Importância do cirurgião-dentista no diagnóstico da sífilis.

Natália Mesquita

A sífilis é uma infecção crônica, sistêmica, causada pela espécie bacteriana Treponema pallidum, que pode resultar em consequências graves e morte dos pacientes acometidos, quando não identificados e tratados de forma precoce.  As principais formas de transmissão são pelo contato sexual e de mãe para filho. A sífilis se apresenta em três estágios clínicos: primário, secundário e terciário, com manifestações clínicas específicas que caracterizam o curso da doença1.

As Unidades de Saúde da Família (USF) assumem papel fundamental em todo processo da doença, do diagnóstico ao tratamento e também no acompanhamento pré-natal, em caso de gestantes acometidas pela mesma. Uma vez inserido na Equipe de Saúde da Família (EqSF), o Cirurgião Dentista (CD) se constitui como um ator importante na rede de cuidados. Este profissional pode suspeitar de queixas características deste agravo, por meio de uma escuta qualificada, exame clínico bem executado e conclusão diagnóstica através da realização de testes rápidos na própria unidade de saúde e solicitação do exame laboratorial Venereal Disease Research Laboratory (VDRL), confirmatório para a doença1,2,3.

A sífilis se tornou uma doença de notificação compulsória no Brasil de forma gradual: em 22 de dezembro de 1986 foi instituída a notificação da sífilis congênita através da Portaria nº542; em 14 de julho de 2005, por sua vez, passou-se a notificar sífilis em gestantes, através da portaria de nº33; e somente em 31 de agosto de 2010, através da Portaria n° 2.472 a sífilis adquirida entrou para o escopo de doenças com notificação compulsória4

Segundo Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2021, foram notificados em todo território nacional 1.035.942 casos de sífilis adquirida e 466.584 casos de sífilis em gestantes. Em se tratando da sífilis congênita, foram registrados 221.600 novos casos e 2.064 óbitos. O fato é que a sífilis, independente de sua forma de apresentação, trata-se de um problema de saúde pública. Cabe ressaltar que qualquer profissional de saúde pode realizar a notificação, reforçando a atuação do odontólogo nessa prática4.

Inicialmente, a sífilis pode se manifestar clinicamente como uma lesão papular única, com ulceração central: o cancro1 (figura 1). Este, por sua vez pode se apresentar em região genital, anal e oral. Apesar de ser mais comum em região de genitálias, quando a primeira manifestação da sífilis acontece na cavidade oral, estas lesões são mais comumente encontradas em lábios, podendo também ser vistas em língua, palato, gengiva e amígdalas. Quando abordamos a variante gênero temos que, em homens, a predileção é por lábio superior, enquanto nas mulheres a região mais acometida é o lábio inferior. O surgimento da lesão pode vir acompanhado de linfadenopatia regional podendo ser uni ou bilateral, caracterizando o estágio inicial da doença, a Sífilis Primária1,5,6,7,8 .

No segundo estágio, a Sífilis Secundária, o paciente pode cursar com os sintomas sistêmicos, como por exemplo: linfadenopatia indolor, dor de garganta, mal-estar, cefaléia, perda de peso, febre, dor musculoesquelética e lesões cutâneas maculopapulares difusas e indolores que se disseminam por todo o corpo, principalmente em região palmo-plantar1. Neste estágio a cavidade oral também pode ser acometida por lesões que se apresentam como placas mucosas (zonas de mucosa sensível e esbranquiçada) (figura 2), encontradas com maior freqüência em língua, lábios, mucosa jugal e palato, pápulas fendidas (placas mucosas elevadas em região de dobra da comissura labial) e/ou condiloma lata (lesão papilar que podem apresentar certa semelhança com papilomas virais) (figura 3). A sífilis secundária se diferencia da fase primária por apresentar tipicamente lesões múltiplas. O quadro geralmente é resolvido espontaneamente entre três a doze semanas, podendo ocorrer recidivas no ano seguinte1,5,6,7,5.

Passado o segundo estágio, a doença entra num período de latência, que se caracteriza pela ausência de lesões e sintomas, podendo durar de um a trinta anos1. Passado esse período, uma parcela considerável dos pacientes cursa para a fase mais grave da doença, a sífilis terciária. Neste estágio podem ocorrer complicações sérias no sistema vascular, envolvimento do Sistema Nervoso Central (SNC), lesões oculares e  tecidual característica dessa fase, conhecida como goma (lesão endurecida, nodular ou ulcerada que pode causar extensa destruição tecidual). Quando acomete a cavidade oral em região de palato (figura 4), a ulceração da goma pode levar à perfuração do mesmo em direção à cavidade nasal1,5,6,7,8.

Pacientes gestantes infectadas pela sífilis que não foram acompanhadas e tratadas através do pré-natal podem transmitir a doença para o feto e este, conseqüentemente, adquirir o que chamamos de sífilis congênita, resultando em seqüelas para a vida toda1.  Alterações agrupadas e denominadas como tríade de Hutchinson podem acometer os bebês contaminados. São elas: dentes de Hutchinson, ceratite ocular intersticial e surdez associada ao comprometimento do oitavo par de nervos cranianos. Na cavidade oral podem ser observadas alterações da forma dos incisivos – incisivos de Hutchinson (figura 5) e dos molares – molares em amora (figura 6). Números elevados de sífilis congênita, portanto, apontam para fragilidade na rede de cuidados a este grupo populacional 1,9. Uma vez fechado o diagnóstico, o tratamento de eleição para a sífilis é a penicilina – ou doxiciclina para pacientes alérgicos- e a dose e esquema de administração são definidos pelo estágio da doença1. O CD não vai tratar a sífilis, mas  pode e deve estar inserido em todo processo de cuidado ao paciente, atuando principalmente na identificação precoce, através do diagnóstico diferencial sobre as manifestações orais da doença, evitando a evolução para estágios mais avançados, com risco de morte2,3.

 

Colunista: Natália Martins Souza Mesquita. Bacharela em Saúde (UFBA); Cirurgiã Dentista (UFBA); Residente em Saúde da Família (FESF-SUS/FIOCRUZ).

 

Referências

  1. Neville B. Patologia Oral e Maxilofacial – Cap. 5 Infecções bacterianas. 4ª edição. Rio de Janeiro: Elsevier; 2016. 
  1. Carlan L, et al. Atuação do dentista da atenção básica no combate às infecções sexualmente transmissíveis: revisão de literatura. Brazilian Journal of Health Review. Disponível em: <https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/44228#:~:text=O%20objetivo%20do%20estudo%20%C3%A9,uma%20revis%C3%A3o%20bibliogr%C3%A1fica%20da%20literatura. > Acesso em: 29/05/2023.
  1. Cabral C, Valença J. Perfil epidemiológico da sífilis e o papel do Dentista. Research, Society and Development, v. 9, n. 8 2020. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i8.5387 > Acesso em: 29/05/2023.
  1. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico de Sífilis. 2022. Disponível em: < https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2022/boletim-epidemiologico-de-sifilis-numero-especial-out-2022 > . Acesso em: 29/05/2023.
  1. Batista L, et al. A sífilis e suas manifestações bucais: relato de caso clínico. Revista Eletrônica Acervo Odontológico, Vol. 1. 2020. Disponível em: < https://acervomais.com.br/index.php/odontologico/article/download/3446/2182 >. Acesso em: 29/05/2023.
  1. Kalinin Y. Sífilis: Aspectos clínicos, Transmissão, Manifestação oral, Diagnóstico e Tratamento. Portal Metodista de Periódicos Científicos e Acadêmicos, Universidade Metodista de São Paulo. Odonto; 23(45-46): 65-76. doi:10.15603/2176-1000/odonto.v23n4546p65-76. Disponível em: < https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-909279 >. Acesso em: 29/05/2023.
  1. Souza B. Manifestações clínicas orais da sífilis. Revista Da Faculdade De Odontologia – UPF, Passo Fundo, v. 22, n. 1, p. 82-85, 2017. Acesso em: < https://docs.bvsalud.org/biblioref/2017/08/848727/artigo14.pdf >. Acesso em: 29/05/2023.
  1. Binda A, et al. Manifestações orais da Sífilis: uma revisão de literatura. Research, Society and Development, v. 10, n. 12, e585101220943, 2021. Disponível em: < https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/20943 >. Acesso em: 29/05/2023.
  1. Cabral B, et al. Sífilis em gestante e sífilis congênita: um estudo retrospectivo. Revista Ciência Plural, v.3, n3. 2017. Acesso em: <  https://periodicos.ufrn.br/rcp/article/view/13145 >. Acesso em: 29/05/2023.
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