Hepatites e odontologia: o que é preciso saber.

Colunista – Marcel Carvalho

A prática odontológica clínica, em todos os níveis de atenção, expõe o profissional ao risco de contaminação por doenças infectocontagiosas. Dentre estas doenças, incluem-se as hepatites virais, devido a sua forma de transmissão. Dia 28 de Julho é o dia da luta contra a Hepatite. Por isso, nesta coluna trouxemos informações práticas com o objetivo de descrever as formas de transmissão, suas implicações na rotina do consultório odontológico e as formas de prevenção.

Hepatite significa inflamação do fígado. Uma doença por vezes grave, mas, muitas vezes não apresenta sintomas. Por esse motivo, muitas pessoas não sabem que estão infectadas. Algumas só terão o diagnóstico de hepatite viral quando já têm complicações mais severas, como cirrose ou até mesmo câncer de fígado (hepatocarcinoma). Outros sintomas da hepatite podem ser confundidos com outras infecções: febre, mal-estar, enjoo, tontura, vômitos, cansaço, dor abdominal, urina escura, fezes claras e olhos e pele amarelados. Esses sinais geralmente aparecem na fase aguda da hepatite e a icterícia é, provavelmente, o sintoma mais característico. Damos o nome de icterícia à coloração amarelada da pele, olhos e mucosas provocadas pelo acúmulo no sangue de uma substância chamada bilirrubina. Nos quadros de hepatite, o fígado inflamado e doente, perde a capacidade de metabolizar e/ou eliminar a bilirrubina que é constantemente produzida pelo baço, durante o processo de destruição das hemácias (glóbulos vermelhos) velhas presentes no organismo. Portanto, é muito comum nos quadros de hepatite haver acúmulo de bilirrubina no sangue e este excesso extravasar para pele e mucosas, provocando a aparência amarelada dos mesmos.

As hepatites integram o segundo maior grupo de doenças infecciosas letais em todo o mundo. As hepatites B e C são uma questão de saúde pública no Brasil, onde aproximadamente 1,5 milhão de pessoas vivem com alguma das duas infecções.  Existem ainda o vírus da hepatite D, que é mais comum na região Norte, e o da hepatite E, que é menos frequente no país. As hepatites virais são as mais frequentes sendo causadas pelos vírus hepatotrópicos mais comuns: A, B, C, D e E.  A hepatite A​ é de transmissão oral-fecal, quando a contaminação ocorre de uma pessoa para outra por meio da ingestão de alimentos ou  água que estejam contaminados pelas fezes de uma pessoa doente. Práticas sexuais também podem ser formas de transmissão da hepatite A. 

Os vírus das hepatites B e C representam maior importância para o dentista e a equipe de saúde bucal. Estes vírus podem ser transmitidos através do contato com sangue infectado ou fluidos corporais. Isso pode ocorrer por meio: do compartilhamento de agulhas; ao receber uma transfusão de sangue com sangue infectado; contato sexual desprotegido; durante a gestação de uma pessoa que tenha o vírus, passando para o bebê.

O vírus HBV também pode ser transmitido pelo aleitamento materno caso o bebê e a mãe não tenham recebido tratamento adequado. A exposição ao HBV também pode ocorrer em caso de lesão percutânea (ferimento com objetos pérfuro-cortantes) ou contato com mucosas, membranas ou pele com ferimentos, colocando os profissionais de saúde bucal em risco de se infectar pelos vírus da hepatite.

No que diz respeito à odontologia, especificamente, há possibilidade de transmissão de hepatite B e C  durante procedimentos odontológicos invasivos, como: extrações dentárias; cirurgias orais maiores e menores; e, acidentes perfuro-cortantes. Por esse motivo, é importante que os consultórios, clínicas odontológicas, unidades de saúde e outros locais de atendimento clínico sigam diretrizes rígidas de controle de infecções para evitar a propagação desses vírus. Isso inclui medidas como:

  • Esterilizar adequadamente os instrumentos e equipamentos odontológicos, seguindo protocolos pré-estabelecidos;
  • Dar preferência a utilização da autoclave;
  • Manter uma rotina de limpeza e desinfecção regular e eficiente de superfícies e equipamentos no consultório odontológico;
  • Sempre utilizar equipamentos de proteção individual como: luvas, máscaras, óculos de proteção e aventais durante procedimentos odontológicos;
  • Manuseio, descarte e armazenamento adequados e seguros de objetos perfurocortantes (agulhas, seringas, etc.) reduzem o risco de lesões por picada de agulha e contaminação cruzada, evitando possível exposição ao sangue infectado;
  • Seguir protocolos adequados de higiene das mãos, incluindo lavagem frequente das mãos com água e sabão ou uso de desinfetantes para as mãos à base de álcool.

Embora exista um potencial de transmissão de hepatite no ambiente odontológico, boas práticas de controle de infecção e comunicação aberta entre pacientes e dentistas podem ajudar a minimizar esse risco. Durante a triagem do paciente, os profissionais devem identificar indivíduos portadores dos vírus e que requerem precauções adicionais antes de realizar procedimentos odontológicos invasivos. Se o profissional julgar necessário, é possível solicitar exames laboratoriais para o diagnóstico sorológico da hepatite, o qual envolve a avaliação de antígenos e anticorpos e, por meio da combinação destes marcadores, é possível determinar as diferentes fases da infecção.

O reconhecimento de sinais e sintomas da hepatite é parte relevante da semiologia, que antecede o exame da cavidade bucal, e naturalmente também se estenderá através de lesões bucais. Para manejo odontológico do paciente hepatopata é importante ter conhecimento acerca das condições gerais de saúde do paciente, tendo em vista o risco elevado de sangramento no trans e  pós-cirúrgico. Recomenda-se que o cirurgião-dentista esteja atento para valores de INR acima de 2, embora esse exame isoladamente não seja suficiente para a avaliação de coagulopatia, trata-se de um parâmetro prognóstico interessante para o sangramento pós-operatório, que a princípio se contém com manobras hemostáticas locais. A prevalência e a severidade de doença periodontal e de lesões de cárie são elevadas, todavia, outras manifestações podem também ser observadas em virtude do uso de medicamentos específicos para o tratamento desta condição, a exemplo da hipossalivação, xerostomia, glossite atrófica, infecções oportunistas e língua despapilada.

Adicionalmente, pacientes com doenças hepáticas crônicas podem manifestar também em cavidade oral a icterícia, equimoses, hematomas, petéquias palatais e varizes linguais, que são em decorrência dos distúrbios de coagulação, ou seja, são manifestações orais da sua condição sistêmica propriamente dita. O conhecimento de tais manifestações, são de suma importância ao profissional, pois contribui na identificação e na elaboração de um planejamento terapêutico adequado a esses pacientes.

Além das formas de prevenção citadas anteriormente é importante recordar que toda a equipe de profissionais de saúde bucal devem ser vacinados contra a hepatite B para proteger a si mesmos e a seus pacientes. A vacina contra hepatite B está disponível gratuitamente no SUS. A imunização é realizada em três doses, com intervalo recomendado de um mês entre a primeira e a segunda e de seis meses entre a primeira e a terceira dose. As três doses da vacina alcançam até 95% de eficácia para proteção. Para se ter certeza da resposta vacinal a sorologia para detecção do anti-HBsAg deve ser feita de 1-2 meses após a finalização do esquema de vacinação, de modo a fornecer informações definitivas sobre a resposta da vacina. A vacinação não apenas evita que o provedor contraia o vírus, mas também reduz o risco de transmiti-lo aos pacientes.

Caso o profissional da equipe de saúde bucal sofra um acidente de trabalho e for exposto durante a prática com um paciente que tenha o diagnostico de Hepatite, existem algumas medidas importantes para proteger a si e aos outros. Seguem algumas delas:

  • O profissional deve procurar imediatamente orientação médica e informar o departamento de saúde ocupacional sobre a exposição, para notificação deste acidente junto aos órgãos competentes.
  • Será necessário avaliar os riscos e os detalhes específicos da exposição, como o tipo de hepatite, a carga viral do paciente e a natureza do procedimento odontológico realizado. Esta avaliação ajudará a determinar o nível de risco para o profissional e orientará as ações futuras.
  • Dependendo da avaliação do risco, pode ser indicado o tratamento profilático. As opções de profilaxia para exposição à hepatite B podem incluir imunoglobulina para hepatite B (HBIG) e vacinação contra hepatite B se o dentista ainda não estiver imune.
  • Para a exposição à hepatite C, atualmente não há tratamento profilático específico disponível, mas pode ser necessário um monitoramento rigoroso da função hepática e testes de acompanhamento para infecção por hepatite C para detectar qualquer infecção nos estágios iniciais.
  • Testes sorológicos, como testes de anticorpos e testes de carga viral, podem ajudar a identificar qualquer infecção potencial e orientar o manejo e tratamento adicionais.

É importante observar que as etapas e recomendações exatas podem variar dependendo das circunstâncias individuais e dos protocolos e diretrizes específicos dos profissionais de saúde ou dos departamentos de saúde ocupacional locais.

A conduta da equipe de saúde bucal frente a um paciente com doença crônica no  fígado  requer  cuidado  e  conhecimento  acerca  das  principais  manifestações gerais e orais do paciente com distúrbio hepático. Por isso, os profissionais de saúde bucal devem receber educação e treinamento adequados e constantes sobre práticas de controle de infecções, incluindo manuseio adequado e prevenção da transmissão de hepatite. Seguindo essas medidas preventivas, os consultórios odontológicos podem reduzir significativamente o risco de transmissão de hepatite e garantir a segurança dos profissionais de saúde bucal e dos pacientes.

A adoção das medidas eficazes de controle de infecções na prática odontológica constitui o meio adequado para prevenção de todas as infecções transmitidas pelo sangue, saliva e outras secreções corporais capazes de serem infectantes durante o atendimento odontológico. Profissionais da saúde devem realizar as vacinações recomendadas pelo Ministério da Saúde, bem como se manterem atualizados quanto às questões que envolvem as hepatites virais, seguindo orientações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS).

 A prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento efetivo são fundamentais, para o controle das hepatites virais. O Brasil faz parte de uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) chamada Estratégia para Eliminação das Hepatites Virais como Problema de Saúde Pública, cuja proposta é reduzir o número de novas infecções em 80% e a taxa de mortalidade para 65% em relação às médias atuais ao ano. Para contribuir com o enfrentamento do problema, o Ministério da Saúde lançou a Linha de Cuidado das Hepatites Virais no Adulto, uma plataforma on-line que auxilia gestores, profissionais de saúde e cidadãos. A ferramenta facilita, orienta e incentiva o uso dos insumos, tecnologias e outros recursos em saúde no cotidiano de trabalho, na elaboração e na implementação de ações de prevenção, rastreio, diagnóstico, tratamento e acompanhamento das pessoas. O material traz padronizações técnicas relativas à organização do atendimento no sistema de saúde e descreve o caminho mais adequado que o paciente deve percorrer ou o encaminhamento pela rede de assistência que a equipe de saúde deve prescrever. 

Colunista

Marcel Jhonnata Ferreira Carvalho. Doutorando em Odontologia e Saúde pela Universidade Federal da Bahia – PPGOS/UFBA. Profissional da rede de atenção básica à Saúde do município de Salvador-Ba.

 

Referências

Silva RESENDE, Vera Lúcia; Nogueira Guimarães de ABREU, Mauro Henrique; TEIXEIRA, Rosângela; Almeida PORDEUS, Isabela Hepatites Virais na Prática Odontológica: Riscos e Prevenção Pesquisa Brasileira em Odontopediatria e Clínica Integrada, vol. 10, núm. 2, mayo-agosto, 2010, pp. 317-323 Universidade Federal da Paraíba Paraíba, Brasil

Cristhine Sato FERNANDEZ; Elson Braga de MELLO; Maria José Santos de ALENCAR; Nathalia ALBRECHT. Conhecimento dos dentistas sobre contaminação das hepatites B e C na rotina odontológica. Rev. Bras. Odontol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dez.2013

MIASATO, José Massao & SILVA, Francisco Algusto Gondim. Hepatites virais: um fator de risco na prática odontológica. Rev. bras. Odontol., Rio de Janeiro, v. 66, n. 1, p.23-27, jan./jun. 2009

Medina JB, Andrade NS, Eduardo FP, Bezinelli  L, Franco  JB, Gallottini  M, et  al.  Bleeding during  and  after  dental  extractions  in patients with liver cirrhosis. Int J Oral Maxillofac Surg 2018; 47(12). Doi:10.1016/j.ijom.2018.04.007

Rodrigues DS et al. Lesões bucais associadas a hepatites: algumas delas seriam encontradas nas hepatites autoimunes? RGS.2021;23(1): 78-97

Di Profio B, Inoue G, Marui VC, Trombini AL, Matroni RJ, Ortega KL, et al. Condição bucal de hepatopatas pré-transplantados e transplantados hepáticos:  revisão de literatura. Braz J Periodontol 2016;26(1):28-38.

MARTINS, A. M. E. B. L., BARRETO, S. M. Vacinação contra a hepatite B entre cirurgiões dentistas. Rev. Saúde Pública, v. 37, n. 3, p. 333-338, 2003.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria Executiva. Programa Nacional de Hepatites Virais. Hepatites Virais: o Brasil está atento. Brasília: Ministério da Saúde, 2003, 24 p.

COMPARTILHE