Autismo no universo da linguagem: reflexões sobre as variadas possibilidades de dizer.

Giselle dos Santos de Almeida – Fonoaudióloga (UNEB), residente em Saúde Mental (UNEB).

De acordo com o “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” (DSMV), o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é caracterizado por uma condição que afeta o neurodesenvolvimento e ocasiona “prejuízo persistente na comunicação social recíproca e padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades”1.

No entanto, em uma visão menos biomédica, esta condição também pode ser entendida como constitutiva de uma identidade profundamente diversa. Sendo assim, a pessoa com autismo poderá manifestar dificuldades de aprendizagem, no processo de aquisição da linguagem, nas interações sociais ou mesmo na elaboração dos enunciados de uma conversa 2.

Presente desde o início da história da humanidade, a linguagem é mais do que uma forma de se comunicar, é um elo que conecta a organização do pensamento e aquilo que se quer compreender e expressar 3.

Levando em conta a possível dificuldade de socialização presente no sujeito com autismo, admite-se que o desenvolvimento da linguagem carece de cuidado e investimento, o que justifica a necessidade de dedicar-se para oferecer uma escuta minuciosa das histórias apresentadas, estar atento às considerações acerca das singularidades de cada indivíduo e investir nas potencialidades que os cercam 4.

As pessoas com autismo se utilizam de diferentes possibilidades enunciativas, tanto de caráter verbal quanto não verbal, constituídas com base nas relações dialógicas, que por sua vez só existem a partir das interações entre os indivíduos 5.

A linguagem é dialógica, e para falar sobre dialogia é fundamental abordar a obra do Círculo de Bakhtin, já que para o autor podemos dizer que viver é participar do diálogo e que o outro é imprescindível, pois é somente na relação com o outro que se apresentam a multiplicidade de vozes, os projetos de dizer, as repetições, os gestos, as ressonâncias 3,6,7.

Segundo o pensador, o enunciado, sempre concreto e historicamente situado, é o elemento que viabiliza esse olhar para as diferentes vozes que se estabelecem através das relações dialógicas7.

Cabe aqui citar o estudo de caso de uma pessoa com TEA que se relaciona com as reflexões acerca das diversas possibilidades enunciativas verbais e não verbais. Foi observada a presença de gestos, escrita, movimentos corporais, expressões faciais e sons que se caracterizam como constitutivos do enunciado construído pelo sujeito. Historicamente, existe uma dicotomia a partir da análise do desempenho da fala entre o que se conceitua como verbal e não verbal, mas do ponto de vista da linguagem estes elementos não são opostos e muito menos isolados, pelo contrário, podem estabelecer relações coexistência e complementaridade na produção dos sentidos. Ainda que as pessoas com autismo possam ter mais dificuldades com o componente verbal da linguagem, a sociedade na qual elas estão imersas se utiliza tanto de elementos verbais quanto não verbais, por isso, os diferentes modos de enunciar devem ser valorizados 8.

O ponto é que lidar com aquilo que não conhecemos, ou que não é convencional, exige ouvidos e olhos atentos, além de uma interpretação refinada. Então, interrogações sobre como é possível identificar sentido no que o indivíduo com autismo diz surgem com frequência 9.

Pensando com Bakhtin podemos inferir que devemos buscar pelo sentido presente nas diversas formas de dizer, nas condições em que é possível para a pessoa com autismo. Já que tudo que se enuncia com verdade possui concordância ou discordância com algo, independente da sua forma e do grau de nitidez com qual se comunica 5.

Sendo assim, uma perspectiva dialógica acredita que indivíduos enunciadores buscam respostas, por isso cabe ao outro atribuir sentido aos dizeres que transcendem as manias e as estereotipias 4.

A grande questão é que há uma tendência, por parte dos profissionais, em considerar que a pessoa com autismo é passiva, acabada, o que colabora para que as singularidades dos sujeitos e dos seus interlocutores sejam camufladas 10.

Portanto, é preciso entender que qualquer enunciação que parte de um indivíduo na procura da interação com o seu semelhante deve ser visto como linguagem e que é fundamental para este indivíduo ser reconhecido como parceiro no diálogo, mesmo que este se utilize predominantemente de
enunciados não verbais 11.

Há quem considere o autismo como uma maneira de ser, o que carrega consigo uma identidade que se expressa nas condições específicas de cada sujeito, mesmo que as manifestações observadas nesses indivíduos integrem aquilo que se entende como espectro 11.
Cada ser é diverso e único, pois suas histórias contam coisas sobre um lugar no mundo e as experiências que suas famílias possuem estão envoltas por uma cultura específica. Consequentemente, tanto o sujeito, como o autismo se constituem como partes singulares de um contexto que não deve se fundamentar numa padronização 12.

Todas as suposições acerca do autismo devem partir de uma perspectiva que não seja marcada pela falta de algo, logo, essas pessoas devem ser acolhidas dentro das suas possibilidades e condições de dizer. Então, o caminho do terapeuta no contexto fonoaudiológico transita em buscar maneiras de dar continuidade ao diálogo, a fim de reconhecer as pessoas com autismo como integrantes de uma conjuntura social na qual diversos dizeres coexistem. Por isso, expandir as possibilidades comunicativas é uma tarefa fundamental quando percebe-se que os recursos linguísticos convencionais não atendem às necessidades particulares de cada sujeito.

REFERÊNCIAS

1. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-V. Tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento et al. Revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli et al. Porto Alegre: Artmed, 5. Ed. 2014.

2. PADILHA1, Bruna; CAVALCANTE, Higor Miranda. AUTISMO, LINGUAGEM E CIBERESPAÇO: POSSÍVEIS DIÁLOGOS ENTRE A TEORIA BAKHTINIANA E A ERA DIGITAL. Congresso Brasileiro Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia Evento online – 30 de agosto a 03 de setembro de 2021.

3. DE ARAÚJO, Isabela Rosália Lima; VIEIRA, ADRIANA DA SILVA; CAVALCANTE, MARIA AUXILIADORA DA SILVA. Contribuição de Vygotsky e Bakhtin na linguagem: sentidos e significados. [TESTE] Debates em Educação, v. 1, n. 2, 2009.

4. OLIVEIRA, Marcus Vinicius Borges; MASINI, Lucia; PIMENTEL, Laine dos Santos. Autismo e linguagem: uma abordagem dialógica. Linguagem, cognição e ensino [livro eletrônico] : conceitos e possibilidades. Campinas, SP : Editora da Abralin, 2021.

5. BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12a. ed. [S.l.]: HUCITEC, 2006.

6. INDURSKY, Freda. Reflexões sobre a linguagem: de Bakhtin à Análise do Discurso. Línguas e instrumentos linguísticos, n. 4/5, p. 69-88, 2000.

7. BAKHTIN, Mikhail (1992). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. 8. DOS SANTOS PIMENTEL, Laine; OLIVEIRA, Marcus Vinicius Borges. Diferentes possibilidades enunciativas no atendimento fonoaudiológico de um sujeito autista.Distúrbios da Comunicação, v. 33, n. 1, p. 1-13, 2021.

8. NAVARRO, Paloma. Fonoaudiologia no contexto da equoterapia: um estudo neurolinguístico de criança com transtorno do espectro autista. 2016. Tese (Doutorado), Instituto de Estudos da Linguagem, São Paulo.

9. COSTA-HÜBES, T. da C. O processo de formação continuada dos professores do Oeste do Paraná: um resgate histórico-reflexivo da formação em língua portuguesa.Londrina, PR: UEL, 2008. (Tese de doutorado).

10. SACKS, Oliver. Um antropólogo em marte. Companhia das Letras. São Paulo – SP, p. 185. 1995.

11.BORDIN, Sônia Maria Sellin. Fale com ele: um estudo Neurolinguístico do autismo. 2006. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.

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